Diante da dúvida de um aluno do estilo shaolin do norte a respeito do porquê que nele não há a utilização de gritos, frente a expressiva presença nos estilos do sul, resolvi arriscar responder fazendo uma breve pesquisa:
Figura: Ideograma de "Chi" ou "Qi".
Logo de início
pensei a respeito do kiai, termo este que todos devem conhecer devido às artes
marciais japonesas como judô, kendo e principalmente karatê. Entretanto começo
perguntando o que é ki?
Do chinês temos chi
=氣, que comumente
conhecemos como energia, qual é composto por dois ideogramas: vapor = 气 e arroz =米. Conseguem perceber que o arroz está abaixo do
vapor? Pois então, a etimologia revela que é o “vapor que sobe ao cozinharmos o
arroz”. Assim sendo, podemos atribuir dentre muitos significados filosóficos
que a energia física, material, o arroz (base da alimentação chinesa =
vitalidade ou força), sobe, ascende em algo imaterial, transparente, espiritual,
o vapor.
Mas voltando ao Kiai
e gritos...
Etimologicamente,
Kiai (気合)é uma
palavra japonesa representada por dois caracteres: “Ki” (気), que significa “energia” e “Ai” (合, 合い) que
significa “harmonia”, encontrei também que este último é uma inflexão do verbo awasu (合わす), “unificar”
(fonte: Fonte: http://shintoryuiaido.wordpress.com/). Portanto, ao associar
ambas, pode-se dizer que “Kiai” é: “energia em harmonia” ou “energia unificada”.
No
blog, Espírito Marcial, voltado à arte do kendo, seu autor afirma: “É isso que os
Sensei querem dizer com o “kiai tem que vir da barriga, de
dentro”. Na verdade, a contração do diafragma, na altura do tanden (região abdominal 3 ou 4
dedos abaixo do umbigo), acompanhada da expiração e emissão do som é o
princípio básico da técnica. A devida preparação mental também é importante,
pois gritar por gritar qualquer um faz, mas demonstrar força, presença e
sentimento combativo frente a um adversário é o fator decisivo para um bom kiai.”
Já nas artes marciais coreanas como, por exemplo,
no hapkido e taekwondo, chamam de kihap. O termo kihap significa “harmonização
das energias internas” (Ki- energia vital ou interna; Hap- harmonização) (CARDIA,
2007). Esse grito deve surgir do abdômen, iniciando com uma inspiração profunda
e a sua liberação é sempre repentina, coincidindo com o golpe que será aplicado
(LASSERRE, 1971).
Não é diferente no kung fu, no caso, shaolin do
sul, no site da escola Nam Pai Kung Fu (http://www.nampai.com.br/?page_id=302&&lnk=1), encontra-se que a emissão sonora não parte
da garganta mas sim do Dan tian ou Tan tien (ambos em chinês) de forma a
aumentar a força dos golpes executados.
Em termos gerais, seja qual for a arte, todas apresentam ter um mesmo
propósito para a utilização do kiai, kihap ou chi partindo da inspiração
abdominal e então com a energia de origem na região a 3 ou 4 dedos abaixo do
umbigo, exterioriza-la a potencializar a força de um chute ou soco.
Por curiosidade, há na rede duas monografias ou trabalhos de conclusão de curso
(vide referências) que desenvolveram pesquisas quanto a eficiência da
utilização desta “técnica” e em ambas o resultado final é positivo. Na
primeira, judô, conclui-se que na dinamometria (mensuramento de força)
isométrica encontraram-se diferenças entre as contrações voluntárias
isométricas máximas com e sem o grito do kiai, obtendo uma resposta maior no
primeiro. Já a segunda, relacionada ao taekwondo, afirma que o pico de aceleração de um chute é maior
quando utilizado o kihap, potencializando assim o impacto do golpe.
Agora, aonde quero chegar com
isso? Por que nos estilos do norte não são encontrados os tais gritos? Ainda
faço outra questão: será que não há essa explosão de energia nas outras artes
marciais? Por que, por exemplo, no Ta Chi Chuan ou no Ai KI (opa!) do não há?
É dito que os estilos externos, (se
posso citar como exemplos: Karatê, Kung fu de Shaolin, Taekwondo, Muay Thai)
também conhecidos como duros, trabalham a energia de forma exterior. Segundo
Reid e Croucher (2003), os mestres dessa classe, ao seguir o movimento,
desferem o golpe de maneira linear e ao utilizar toda a massa corporal podem aumentar a
força do mesmo. Os adeptos das escolas internas (exemplos: Tai Chi Chuan, Aikido,
Hsing-I, Pa-Kuá), já acreditam que a melhor maneira de se defenderem é utilizar
o corpo em movimentos circulares, a partir da energia interna.
Em nem todos os externos há a
presença de gritos, apesar que quem já presenciou algum campeonato de karatê ou
taekwondo observa isso claramente.
Então penso, interno, externo,
interno, externo... todos tem energia de mesma origem! Todos tem Chi, Ki, todos tem “grito”.
Somente a forma de expressá-lo que é diferente. O que é, senão, o simples
expirar de forma mais agressiva quando soltamos um chute? Ou mesmo ao levantar
um peso do chão e é dado aquele tímido som de esforço? Um animal ao defender
sua prole ou a caçar? Isso não seria kiai, kihap ou o chi sendo utilizado?
Inconscientemente todos devem saber usá-los, o ponto central é a intensidade,
de certo não é porque um grita e o outro não que isso será o fator essencial.
No fim, tudo é um e a diferença não está na arte em si, mas no desenvolvimento
e descoberta do próprio praticante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDIA, R.N. Taekwondo Arte Marcial e Cultura Coreana. ed.:R.
N. Cardia, Rio de Janeiro. 2007
LASSERRE, R. O LIVRO DO KIAI E DOS KUATSU. ed.:Mestre Jou.
1971
NETO, A.A. A influência do grito do kiai na produção de força
muscular e no sinal eletromiográfico em um atleta de judô. 2005.
(Monografia). Curso de Educação Física, Universidade Tuiuti do Paraná,
Curitiba. Ver em: http://www.ombrosdegigantes.com.br/doc/15.pdf
REID, Howard.
Croucher, Michael. O Caminho do
Guerreiro – O Paradoxo das Artes Marciais. Editora Cultrix. 287p.